Múmias Incas e mumificação

Os incas mumificavam seus mortos como parte de rituais religiosos, preservando corpos em alta montanha para honrar ancestrais e garantir proteção divina.

A mumificação entre os incas estava ligada a crenças religiosas.
A mumificação entre os incas estava ligada a crenças religiosas.

 

Introdução: mumificação e múmias da civilização Inca


A civilização Inca, que floresceu na região dos Andes, na América do Sul, do início do século XIII até a conquista espanhola em 1533, desenvolveu uma abordagem única para a mumificação e o culto aos ancestrais. Embora a mumificação seja mais comumente associada ao Antigo Egito, os incas também tinham rituais e práticas complexas envolvendo a preservação dos mortos. Suas múmias, muitas vezes chamadas de mallquis, tinham um profundo significado religioso, social e político.



Objetivo da mumificação: crenças incas sobre a morte e o pós-vida


Os incas acreditavam em uma vida após a morte onde os falecidos continuariam a existir em uma forma espiritual. A morte não era vista como o fim, mas como uma transição para outro reino, onde a alma mantinha uma conexão com o mundo dos vivos. Uma parte essencial dessa conexão era a preservação do corpo físico, que se acreditava abrigar a alma. Os incas acreditavam que manter o corpo dos mortos, especialmente de governantes e figuras importantes, permitia que eles continuassem a influenciar tanto o mundo espiritual quanto o material (terreno).


Os ancestrais, particularmente a linhagem real, eram considerados intermediários entre os deuses incas e os vivos. Essa crença fundamentava a prática inca de mumificação, onde os corpos de indivíduos da elite, especialmente reis e nobres, eram cuidadosamente preservados e honrados.



Processo de mumificação na civilização inca


O processo de mumificação utilizado pelos incas, embora não tão elaborado quanto o egípcio, que envolvia a remoção de órgãos, era eficaz para preservar os corpos no ambiente seco e frio dos Andes. Os incas usavam dois métodos principais:


1. Preservação natural: As grandes altitudes dos Andes ofereciam condições naturais para a preservação dos corpos. As baixas temperaturas e o ar seco desidratavam o cadáver, evitando sua decomposição. Esse processo era frequentemente usado em sacrifícios de alta altitude, onde jovens eram deixados para congelar no topo de montanhas como oferendas aos deuses, particularmente ao deus do sol, Inti.


2. Mumificação artificial: Para enterros mais formais, os incas aplicavam métodos artificiais, que incluíam envolver o corpo em tecidos finos e colocá-lo em posições semelhantes ao feto. O corpo era então armazenado em um túmulo ou local sagrado, frequentemente em cavernas ou debaixo da terra. Esses túmulos eram geralmente localizados em encostas ou montanhas, locais considerados sagrados por estarem mais próximos dos deuses.


Os incas secavam o corpo usando o calor de fogueiras ou a exposição ao sol. Esse processo também poderia envolver cobrir o corpo com materiais vegetais ou terra para ajudar na desidratação. Uma vez que o corpo estivesse completamente seco, ele era envolto em camadas de tecidos finamente tecidos, ricamente decorados para indicar o status do falecido.



O papel das múmias na sociedade inca:


As múmias desempenhavam um papel central na sociedade inca, servindo tanto a propósitos religiosos quanto políticos. Os restos preservados de reis, conhecidos como mallquis, eram tratados com o máximo respeito e continuavam a fazer parte da vida inca muito depois de sua morte.


Cerimônias religiosas: as múmias dos ancestrais eram figuras centrais em cerimônias religiosas. Os incas acreditavam que seus governantes falecidos continuavam a viver em suas formas mumificadas e podiam influenciar os vivos. As múmias eram frequentemente exibidas durante festivais importantes, vestidas com trajes finos e até recebiam comida e bebida como se ainda estivessem vivas. Durante festivais como o Inti Raymi (Festival do Sol), as múmias dos imperadores passados eram retiradas de seus locais de descanso para serem honradas pelo povo.


Influência política: as múmias dos governantes incas também mantinham um papel político. Mesmo após a morte, os imperadores incas continuavam a "possuir" terras e recursos, que eram gerenciados por seus descendentes. Essa prática garantia que a influência do governante falecido persistisse na esfera política. A múmia de um governante era consultada por sacerdotes ou familiares em decisões importantes, e oferendas eram continuamente feitas para garantir seu favor.




Sacrifício infantil e múmias: a prática de Capacocha


Um dos aspectos mais impressionantes da mumificação inca está ligado à prática de capacocha, uma forma de sacrifício ritual de crianças. Os incas acreditavam que sacrificar crianças era uma poderosa oferenda para apaziguar os deuses, especialmente em tempos de crise, como desastres naturais, derrotas militares ou durante eventos significativos como a coroação de um novo imperador.


Esses sacrifícios eram frequentemente realizados em locais de alta altitude, com as crianças sendo levadas ao topo das montanhas e ritualmente mortas, geralmente por uma combinação de exposição ao frio e execução ritual. As condições de alta altitude naturalmente mumificavam seus corpos, preservando-os em detalhes impressionantes.


O exemplo mais famoso dessa prática é a descoberta das "Múmias de Llullaillaco", três crianças incas encontradas no topo do vulcão Llullaillaco, na Argentina. Essas múmias, descobertas em 1999, estavam tão bem preservadas pelo frio que pareciam ter morrido recentemente. Seus corpos, junto com os artefatos enterrados com eles, fornecem uma janela para os elaborados rituais associados ao capacocha.

 

Foto de uma múmia preservada de uma menina inca

Múmia Inca conhecida como "a donzela": encontrada em março de 1999.

 



A importância dos tecidos e das oferendas


Os tecidos desempenhavam um papel importante nas práticas funerárias incas. As múmias eram tipicamente envolvidas em tecidos finamente tecidos, muitas vezes em várias camadas, decorados com padrões complexos e cores vibrantes. Esses tecidos não apenas ajudavam a preservar o corpo, mas também indicavam o status social e a riqueza do falecido.

As oferendas também eram uma parte crítica dos rituais de enterro inca. As múmias eram frequentemente enterradas com itens que seriam úteis na vida após a morte, como cerâmica, alimentos, bebidas e ferramentas. Para nobres e membros da realeza, os túmulos podiam incluir ouro, prata e outros materiais preciosos. No caso das múmias sacrificadas, como as de capacocha, as crianças eram enterradas com pequenas figuras de ouro, prata e conchas de spondylus, que eram consideradas de grande importância espiritual.



A conquista espanhola e o destino das múmias incas


A chegada dos espanhóis no início do século XVI marcou uma mudança dramática no destino das múmias incas. Os espanhóis, chocados com a reverência que os incas tinham por suas múmias, viam essa prática como idolatria. Como parte de seus esforços para converter a população indígena ao cristianismo, conquistadores e missionários espanhóis destruíram sistematicamente muitas múmias incas. Eles saquearam locais de sepultamento, roubaram artefatos valiosos e profanaram os corpos preservados dos governantes incas.


No entanto, nem todas as múmias foram perdidas. Algumas foram escondidas pela população local para protegê-las dos espanhóis, e outras foram ignoradas em locais remotos ou de difícil acesso. Descobertas arqueológicas no século XX e XXI revelaram muitas múmias bem preservadas, oferecendo um conhecimento valioso sobre a cultura, a religião e a abordagem inca para a morte e o pós-vida.



Descobertas arqueológicas e pesquisas científicas


Nas últimas décadas, o estudo das múmias incas se expandiu graças às escavações arqueológicas e à análise científica. Múmias de alta altitude, como as dos sacrifícios capacocha, forneceram dados extraordinários devido à preservação excepcional. Técnicas modernas, como análise de DNA, estudos isotópicos e datação por radiocarbono, ajudaram os pesquisadores a aprender mais sobre a saúde, a dieta e o status social dos indivíduos, bem como sobre os rituais realizados durante suas vidas e após a morte.


Uma das revelações mais significativas foi o uso da análise isotópica, que mostrou que muitas das crianças sacrificadas foram alimentadas com dietas especiais (ricas em milho e proteínas animais) nos meses que antecederam suas mortes. Essa preparação para o sacrifício indica um processo ritual de longo prazo, em vez de um evento espontâneo.

 

Foto de uma múmia de uma princesa inca

Múmia de uma princesa Inca

 

 

 


 

Por Jefferson Evandro Machado Ramos (graduado em História pela FFLCH-USP)

Artigo publicado em 03/10/2024