Pintura Egípcia Antiga

A pintura do Egito Antigo era uma expressão artística profundamente simbólica, voltada à religiosidade, à vida após a morte e à exaltação da ordem social e divina.

Pintura no Egito Antigo: funções religiosas, políticas e funerárias.
Pintura no Egito Antigo: funções religiosas, políticas e funerárias.

 

Introdução


A pintura egípcia antiga constitui uma das manifestações mais significativas do legado artístico da civilização do Antigo Egito. Desenvolvida ao longo de milênios, essa forma de expressão artística não tinha como objetivo central a estética no sentido moderno, mas antes uma função simbólica, religiosa e funcional. Inserida num contexto teocrático e profundamente hierarquizado, a arte egípcia era governada por cânones rígidos de representação e por um simbolismo visual que refletia as crenças, a organização social e a concepção de mundo desse povo. A pintura egípcia, desenvolvida em templos, tumbas, sarcófagos e papiros, foi, portanto, uma linguagem visual essencial para a comunicação com o mundo dos deuses e dos mortos.


A longevidade e a consistência estilística da pintura egípcia, que manteve formas e convenções relativamente estáveis por mais de dois milênios, demonstram não apenas a importância que os egípcios atribuíram a esse meio artístico, como também o papel que ele desempenhava na cosmovisão egípcia. Ao contrário de estilos artísticos que buscavam inovação e ruptura, como no Renascimento europeu, a arte egípcia visava a manutenção da ordem e da tradição (princípios fundamentais da ideologia do Ma’at, que regia o equilíbrio cósmico e social). A pintura, assim como a escultura e a arquitetura, não era criada para ser contemplada de forma subjetiva, mas para cumprir um papel funcional na perpetuação da existência no além.




Características da pintura egípcia antiga:



Bidimensionalidade: a pintura egípcia não visava a criação de ilusão de profundidade. As figuras humanas, animais e objetos eram representados em duas dimensões, com contornos nítidos e preenchimento cromático plano. A ausência de sombras e a não aplicação de técnicas de modelagem volumétrica reforçavam esse caráter plano, evidenciando uma concepção da arte como representação simbólica e não mimética da realidade.


Frontalidade e perfil: uma convenção peculiar da arte egípcia era a representação das figuras humanas por meio da combinação de diferentes ângulos. A cabeça e os membros inferiores eram retratados de perfil, enquanto o tronco e os olhos eram apresentados de frente. Essa técnica, chamada de "perspectiva hierárquica composta", visava representar cada parte do corpo sob o ângulo mais reconhecível e informativo possível, reforçando a clareza da mensagem visual.


Hierarquização das figuras: a arte egípcia era profundamente marcada pela ideia de ordem e hierarquia. Isso se refletia na escala das figuras pintadas: indivíduos de maior importância social, como faraós e deuses, eram representados em tamanhos maiores em relação a pessoas comuns ou servos. Essa hierarquia visual reafirmava a posição social e religiosa de cada personagem.


Uso de cores simbólicas: as cores não eram empregadas de forma aleatória ou meramente decorativa. Cada cor possuía um valor simbólico específico. O verde, por exemplo, representava fertilidade e renascimento; o vermelho estava associado à energia, mas também à violência e ao caos; o azul simbolizava o rio Nilo, o céu e a criação divina; o amarelo e o dourado eram usados para indicar o caráter eterno dos deuses; o preto remetia à fecundidade do solo do Nilo e à regeneração. A cor da pele também era codificada: homens eram frequentemente pintados com tons ocres ou marrons (indicando exposição ao sol), enquanto mulheres apareciam com pele mais clara.


Representação estática e idealizada: a pintura egípcia evitava cenas de movimento dinâmico ou expressões individuais. As figuras eram representadas de maneira idealizada e serena, com posturas rígidas e gestos padronizados. Essa abordagem visava preservar a imagem atemporal e eterna dos indivíduos, especialmente quando associados ao culto funerário.


Repetição de cenas e simetria: muitos murais e papiros exibem repetição de cenas com pequenas variações. Essa técnica reforçava o caráter ritualístico da arte egípcia. A simetria também era valorizada, contribuindo para a ideia de equilíbrio e ordem.


Emprego de técnicas fixas: os artistas egípcios utilizavam materiais como pigmentos minerais naturais misturados com gomas para aplicar as cores em superfícies como calcário, madeira, papiro ou estuque. As linhas de contorno eram realizadas com pincéis de fibras vegetais e marcavam com precisão o limite de cada figura, sem sobreposição entre elementos distintos.

 

Caça no matagal de papiro; trecho de um mural no túmulo de Nabamun em Tebas-Oeste

Caça no matagal de papiro (pintura de um trecho de um mural no túmulo de Nabamun em Tebas-Oeste).

 



Funções da pintura no Egito Antigo



Função religiosa: muitas das pinturas egípcias estavam relacionadas a rituais religiosos e ao culto dos deuses. Templos, túmulos e sarcófagos eram decorados com cenas que narravam mitos, rituais de oferendas e encontros com divindades. Essas representações visavam assegurar a presença divina e a continuidade do ciclo cósmico. A arte era, nesse sentido, uma linguagem visual que comunicava com o sagrado e fortalecia a crença na ordem divina.


Função funerária: talvez a mais importante entre as funções da pintura egípcia fosse a de garantir a vida após a morte. As tumbas dos faraós e nobres eram ricamente adornadas com pinturas que retratavam não apenas cenas da vida cotidiana, mas também o julgamento da alma no além-túmulo, conforme descrito no "Livro dos Mortos". Acreditava-se que a representação das atividades e dos objetos na parede das tumbas asseguraria sua existência para o falecido no mundo do além.


Função política e ideológica: a arte também servia como instrumento de legitimação do poder real. As pinturas exaltavam o faraó como intermediário entre os deuses e os homens, retratando-o em cenas de vitória militar, oferendas às divindades ou participação em rituais sagrados. Essa representação reiterada reforçava sua autoridade e o caráter divino de sua figura. Além disso, a iconografia estatal transmitia ideologias como a centralidade do Egito no mundo e a superioridade do poder real frente aos povos estrangeiros.


Função documental: a pintura egípcia também tinha valor como registro da vida cotidiana, das práticas agrícolas, das cerimônias e dos hábitos da elite e do povo. Embora fortemente estilizadas, essas imagens oferecem aos historiadores informações preciosas sobre vestimentas, utensílios, estruturas sociais, práticas religiosas e modos de vida do Antigo Egito.


Função didática e ritual: em muitas ocasiões, as imagens pintadas serviam como “guias” visuais que instruíam os mortos sobre como proceder na outra vida, mostrando os passos rituais e as entidades a serem enfrentadas. Através da imagem, o morto aprendia como se comportar para alcançar o julgamento favorável de Osíris e assegurar sua imortalidade.

 

Pintura egípcia retratando o faraqó Seti diante de Hórus

Seti I perante Horus (templo do faráo Templo de Seti I).



Principais temas retratados:



Vida cotidiana: muitas pinturas retratavam cenas da vida comum, especialmente nas tumbas de altos funcionários e nobres. Nessas cenas observam-se atividades como agricultura, caça, pesca, preparo de alimentos, festas, música e dança. Apesar de idealizadas, essas representações revelam a importância atribuída ao cotidiano como modelo a ser perpetuado na vida após a morte.


Rituais religiosos: sacerdotes realizando oferendas, purificações, invocações e outras práticas cerimoniais eram frequentemente retratados nas paredes dos templos e tumbas. Essas imagens reforçavam o papel mediador dos sacerdotes entre os homens e os deuses.


Divindades: os deuses do panteão egípcio, como Rá, Ísis, Osíris, Anúbis, Thoth e Hórus, eram figuras centrais na pintura. Eles eram representados com atributos específicos e em cenas que narravam mitos ou envolviam sua participação em cerimônias de julgamento, criação e proteção.


Faraós: os reis egípcios eram constantemente retratados como guerreiros vitoriosos, construtores de templos, realizadores de oferendas e filhos dos deuses. Tais representações serviam à afirmação do poder e da continuidade dinástica.


Julgamento da alma: um dos temas mais recorrentes nos livros funerários era o julgamento da alma diante de Osíris. A cena clássica do “peso do coração” aparece em muitas tumbas e papiros, mostrando a balança onde o coração do falecido era comparado à pena da verdade (Ma’at), assistido por Anúbis, Thoth e outros deuses.


Mitologia e cosmogonia: as pinturas também abordavam temas mitológicos, como o nascimento do mundo, as lutas entre Hórus e Seth, a ressurreição de Osíris e a jornada solar de Rá. Essas narrativas visuais transmitiam o conhecimento sagrado e reforçavam o papel dos deuses no funcionamento do cosmos.


Cenas militares: embora em menor número comparadas às cenas religiosas e cotidianas, as representações militares exaltavam as vitórias dos faraós, como forma de glorificar sua força e proteger simbolicamente o Egito dos inimigos externos.

 

Pintura retratando Rá e a deusa do Oeste

Rá e a Deusa do Oeste (pintura na tumba de Nefertari)

 

 



Por Jefferson Evandro Machado Ramos (graduado em História pela USP)

Publicado em 14/04/2025